#19 O curioso caso das crianças que não sabem pular.
Digressões com minha mãe, Paulo Freire e Michèlle Petit
Raramente minha mãe está acordada quando tomo o café da manhã, ela acorda tarde. Acontece poucas vezes nosso encontro matutino, quando ocorre trocamos informações sobre diversos assuntos, entre eles as atividades de mediação de leitura que desenvolvemos na Livro Livre Curió Biblioteca Comunitária.
Minha mãe organiza o clube das crianças menores, de 3 a 7 anos, assim como o clube de leitura das mulheres, eu fico com a turma de 8 a 14. Rita, o nome dela, atuou muitos anos na educação infantil em uma creche também da periferia, exerceu a atividade durante 20 anos. Lembro dos relatos da sua atuação freiriana de educadora, mesmo antes dela conhecer a teoria do Paulo Freire.
Ela costumava verificar a higiene das crianças todos os dias, banhava-as todas elas, ensinava a usar sabonete, ensinava a escovar os dentes, higienizava os cabelos delas catando parasitas, cortava as unhas das que precisavam.
Infelizmente as outras educadoras se chateava com a minha mãe, pois essa deveria ser a função da família, minha mãe ignorava e achava impossível educar crianças sujas, e não julgavam as mães ou familiares pois, sendo ela conhecedora da comunidade, sabia que a maioria vivia em uma situação extremamente precária.
Entusiasta de todas as atividades motoras, cognitivas, espaciais, as aulas dela sempre tinham muita música, jogos, brincadeiras. Toda essa bagagem ela trouxe para biblioteca. Com seu olhar de atenção, eu diria científico, ela disse preocupada na mesa do café pra mim:
- Talles, as crianças não sabem pular.
A preocupação da minha mãe tem razão, quando Freire fala da leitura de mundo, fala da capacidade de experimentar o mundo com todos os sentidos que estiverem disponíveis para nós. De tal modo que andar, correr, pular, conseguir ter reflexos, subir, descer, gritar, sussurrar, abaixar, levantar e todas as ações que minha mãe propões todas as segundas para as crianças são fundamentais para aquisição e desenvolvimento da leitura.
“Quanto maior a leitura de mundo, maior a leitura da palavra”. Diz o Paulo Freire.
A antropóloga Michèlle Petit citando Winnicott em seu A arte de ler evidencia toda essa fisicalidade, ora afetiva, ora lúdica, na formação de leitura. Se nossos movimentos ficam cada vez mais contidos e repetitivos devido a manipulação excessiva de dispositivos eletrônicos e por isso deixamos o movimento livre e expansivo, aos poucos as crianças também vão perder os movimentos e não apenas desaprender a pular, elas vão desaprender a ler.
Em um mundo erudito a representação da leitura sempre foi estática, mas o leitor não é estático, temos vários intelectuais que elogiam o deslocamento e até os gregos tinham uma filosofia que era feita andando. Não saber pular, tendo-se condições físicas para tal é preocupante.
Essa conversa com minha mãe nos fez perceber como nossa biblioteca coloca as pessoas em movimento, não apenas nas nossas atividades de mediação de leitura, mas quando ocupamos diversos espaços do bairro, quando vamos passear na floresta, quando levamos todo mundo à praia, quando visitamos diversos museus e espaços culturais. Talvez seja por isso que consigamos tantos bons resultados, porque entendemos que para ler o mundo usamos o corpo.
"Em um mundo erudito a representação da leitura sempre foi estática, mas o leitor não é estático, temos vários intelectuais que elogiam o deslocamento e até os gregos tinham uma filosofia que era feita andando. Não saber pular, tendo-se condições físicas para tal é preocupante".
Talles, nunca tinha parado para pensar na leitura em movimento! ótimo texto.
Que mãe incrível você tem, Talles! E sorte das crianças que podem aprender com ela!